Estátuas São Fantasmas que Morrem por Último
César Borralho*
O FANTASMA DA OBRA
(Viriato Gaspar)
O que faz o poeta?
Vai às compras, paga as prestações,
faz uma fé na lotérica da esquina,
conserta os dentes todos os semestres?
Caminha pelas praças, sorrateiro,
sem ser notado nem pelos pardais
que algazarram na grama e bebedouros?
O que quer o Poeta?
Um busto para os pombos vir cagarem,
seu nome na plaquinha
de uma seção recôndita na biblioteca pública,
um pavilhão inteiro a seu ego nas bienais do livro?
Quer que as mocinhas trêfegas o cerquem
-como se fosse um ídolo do rock –
para pedir-lhe autógrafo nas blusas,
quando passar na rua, solitário,
carregando uma dor que não tem cura
porque nem sua é,
é dor de tudo o que está vivo?
O que é o poeta?
Apenas esse vulto irreparável
que cruza clandestino pelas tardes,
lerdamente fugaz,
a conversar com o silêncio que o habita,
a fustigar a mente com palavras.
As palavras que nunca ninguém disse.
As palavras que habitam latejantes
o enorme cemitério dele mesmo.
(Viriato Gaspar
30/05/2024)
O poema O Fantasma da Obra, de Viriato Gaspar, se configura como um intrincado poema de introspecção, no qual o autor questiona e redefine a própria essência do poeta e da poesia no contexto da modernidade. Ao inquirir sobre o fazer, o querer e o ser do poeta, Gaspar nos conduz a uma reflexão sóbria sobre a alienação do sujeito criador e a busca inteligente por um sentido imanente tanto na vida quanto na arte. Este poema se apresenta como uma meditação sagaz e eloquente sobre a condição do artista, imersa nas ambiguidades e desafios de nosso tempo.
O poeta é retratado como um ser comum e atarefado, envolvido nas rotinas banais do cotidiano. Gaspar dissolve a distinção entre o poeta soberano e o homem comum, sugerindo que a poesia não emerge de uma existência isolada, mas da imersão na vida ordinária e profundamente ligada ao seu entorno. O poeta é, assim, apresentado não como uma figura distante e idealizada, mas como alguém que encontra inspiração na simplicidade de existir.
A questão do desejo do poeta é abordada com uma ironia gloriosa, a ironia do desapego. Seus anseios pelo reconhecimento e pela imortalidade são apresentados de maneira sarcástica, ressaltando a futilidade do ego e do narcisismo na busca por um legado duradouro. A ironia de Gaspar é a evidência máxima de que tais ambições são, em última instância, vazias e efêmeras; uma lástima por fim. Ao responder à pergunta “O que quer o Poeta?”, afirma que o poeta deseja “um busto para os pombos vir cagarem seu nome na plaquinha”. Gaspar tece uma crítica mordaz ao desejo humano por imortalidade e reconhecimento. Afinal, qual é o destino dos bustos? Quando não são mutilados pelos vândalos, tornam-se alvos para as excreções dos pombos, aos bandos. A aspiração por um busto, um símbolo tradicional de homenagem e memória, é imediatamente subvertida pela vitória da columba livia, cujas fezes transformam a honra em degradação. Esta visão satírica invoca a fugacidade da notoriedade e a inevitabilidade da deterioração. Na cultura clássica, a busca pela imortalidade através de monumentos era vista como um meio de transcender a mortalidade. Gaspar, contudo, demole essa aspiração ao mostrar como a natureza e o tempo são indiferentes à glória humana.
“…seu nome na plaquinha de uma seção recôndita na biblioteca pública”, reforça a ideia de um reconhecimento mínimo e quase esquecido. A biblioteca, um templo do saber e da memória, aqui aparece como um labirinto de esquecimentos, onde aos poucos falece a história pessoal dos mortais. A pequena plaquinha em uma seção recôndita representa um triunfo pífio, onde o nome do poeta se esconde no anonimato. É uma metáfora para a futilidade das ambições de imortalidade através de registros materiais. A ironia aqui não é apenas mordaz; é gloriosa em sua capacidade de desvelar verdades subjacentes. Ao escarnecer da busca do poeta por reconhecimento, Gaspar destaca a vaidade inerente a essa presunção e nos incita a refletir sobre a verdadeira natureza do valor e do legado. A glória do poeta, portanto, não reside em bustos ou placas, mas na efemeridade da existência.
A busca do poeta pela imortalidade através de objetos materiais é um desvio do caminho para a distância, pois a integridade só é alcançada quando aceitamos a finitude. Todo poeta se engana ao procurar sentido fora de si mesmo, em objetos externos que não podem verdadeiramente capturar a liberdade e a angústia da vida. Não Viriato Gaspar. Ele nos desafia a reconsiderar o que significa viver e criar de forma autêntica. A glória do poeta, segundo Gaspar, não está em monumentos de pedra ou em nomes gravados em placas, mas na efêmera e indomável chama da poiesis, que ilumina a brevidade dos mortais com alguma plenitude.
O poeta é decretado como uma figura transiente, “…Apenas esse vulto irreparável”, essa presença etérea que, embora esteja presente, é intangível e marcada por uma ausência que não pode ser corrigida. O poeta é alguém incompleto, cuja essência é moldada por algo que está perdido ou quebrado, operando na clandestinidade, atravessando o tempo e o espaço de forma oculta, quase invisível aos olhos da sociedade. As tardes, representando a passagem do tempo, são testemunhas silenciosas dessa travessia furtiva.
A metáfora do cemitério sugere que essas palavras não ditas são tanto um legado quanto um fardo. Elas vivem dentro do poeta, pulsando com vida, mas também o lembram de todas as suas perdas, fracassos e a inevitabilidade da morte. Esse “enorme cemitério” é o repositório de suas dores e memórias, um espaço vasto e sombrio dentro de sua própria existência. O poeta, segundo Viriato Gaspar, é um ser que vive na interseção entre a presença e a ausência, entre a visibilidade e a clandestinidade. Através de uma existência marcada pela introspecção e pelo tormento criativo, o poeta busca dar voz às palavras que habitam seu ser. Estas palavras, inéditas e carregadas de significado, são tanto um testemunho de sua singularidade quanto de sua condição de mortal. O poema, assim, revela a dualidade da vida poética: um constante diálogo com o silêncio e uma batalha com as palavras, que simultaneamente libertam e aprisionam o poeta em seu vasto e pessoal cemitério.
O título do poema O FANTASMA DA OBRA prepara o leitor para uma meditação sobre a natureza efêmera da criação artística e a existência do poeta. O uso da palavra “fantasma” sugere imediatamente a ideia de algo que existe em um estado liminar, entre a presença e a ausência, o material e o imaterial. Um fantasma é uma entidade que, embora não seja tangível, carrega consigo a memória e a essência do que já foi. Neste contexto, o “fantasma” pode ser visto como uma metáfora para a obra de arte e a própria figura do poeta. A obra poética, embora criada e materializada através das palavras, permanece sempre em um estado de transitoriedade. Ela é revivida cada vez que é lida e interpretada, nunca permanecendo fixa ou estática. Assim, a obra de arte se torna um fantasma que assombra tanto o criador quanto o leitor, sempre presente, mas nunca totalmente apreensível. A escolha do termo “obra” também é significativa. Não se refere apenas ao produto final da criação artística, mas ao processo contínuo de criação e recriação. A obra nunca está completa, pois cada leitura, cada interpretação, adiciona novas camadas de significado, outras dimensões ao texto original. Esta visão processual da arte é fundamental para entender a profundidade do título.
O FANTASMA DA OBRA também sugere uma reflexão sobre o legado do poeta. A obra, como um fantasma, continua a existir após a morte do criador, assombrando o mundo dos vivos. No entanto, esse legado é precário e sujeito à mesma transitoriedade que caracteriza a própria vida. A ironia presente no poema, sobre o desejo do poeta por reconhecimento através de monumentos que inevitavelmente se deterioram, reforça essa ideia de que a imortalidade buscada através da arte é ilusória e fugaz. Além de se referir à obra, o título pode ser visto como uma referência ao próprio poeta. Gaspar descreve o poeta como uma figura que “cruza clandestino pelas tardes”, com uma presença fugaz e muitas vezes invisível na sociedade. O poeta, assim como sua obra, é um fantasma que habita as margens do mundo cotidiano, capturando e transformando as experiências efêmeras da vida em arte.
Há uma alusão a “O Fantasma da Ópera”, um romance magistral escrito por Gaston Leroux, publicado no ano de 1910, e posteriormente transposto aos palcos em forma de musical. A narrativa se desenrola na imponente Ópera de Paris e gira em torno de um enigmático personagem conhecido como o Fantasma, cuja presença espectral assombra o local e cuja alma está profundamente enredada em uma paixão obsessiva pela jovem soprano Christine Daaé. Tanto o Fantasma da Ópera quanto o poeta de Viriato Gaspar são figuras que se encontram isoladas e marginalizadas. O Fantasma, em sua tristeza e deformidade, reside nas profundezas subterrâneas da ópera, oculto dos olhares do mundo. O poeta, por sua vez, vaga solitário pelas praças e ruas, invisível aos olhos distraídos dos transeuntes. A música emerge como o refúgio e a expressão do Fantasma, uma linguagem sublime através da qual ele comunica suas emoções e anseios mais íntimos.
Da mesma forma, as palavras e a poesia são para o poeta os instrumentos de sua arte, a tessitura com que entrelaça seus sentimentos e pensamentos mais profundos. A máscara do Fantasma, que oculta sua verdadeira aparência, serve como uma poderosa metáfora para as palavras do poeta, que ao mesmo tempo escondem e revelam sua racionalidade e sentimentos. Sob essa máscara, tanto literal quanto metafórica, reside uma dor intensa e persistente. A narrativa de Leroux e o poema de Gaspar encontram-se interligados por fios invisíveis de solidão, dor e pela sublime necessidade de expressão artística.
Como fantasmas, as estátuas assombram o presente com a memória do passado, uma presença silenciosa e imóvel que guarda histórias e significados. Elas estão impregnadas de uma certa melancolia, sendo testemunhas mudas das eras que passam e das transformações ao seu redor. Mesmo as estátuas sucumbem eventualmente. Elas podem resistir por séculos, mas não são imunes ao desgaste do tempo, à erosão ou ao esquecimento coletivo. Portanto, elas morrem por último, depois de terem resistido muito mais do que as formas de vida que representavam. Até mesmo as tentativas mais duradouras de preservar o passado são temporárias. As estátuas, como fantasmas, vivem entre nós, lembrando-nos que nada é eterno, mas que, por um tempo, podem manter viva a chama daquilo que foi.
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César Borralho é poeta e professor de Filosofia.
COMENTÁRIO DE *VIRIATO GASPAR*, POSTADO A PEDIDO:
Estou sem palavras (o que é grave, em se tratando de um poeta), em face da brilhante análise do meu poema pelo César Borralho. Até o detalhe sutil da referência nas entrelinhas ao Fantasma da Ópera, e a referência também àquele gibi que fazia as delícias dos meninos da minha época, o Fantasma que anda, César conseguiu captar. Uma lindeza de texto, que agregou altura, profundidade e fulgor a meu despretensioso poema. Deixo meu abraço mais carinhoso e fraterno pela consideração e gentileza para com este velho poeta, já cansado de guerra como a Teresa Batista do Amado Jorge. E deixo também consignados meu carinho e afeto pelo editor do Sacada – o poeta Antônio Ailton – que sempre tem a caridade de acolher-me em suas páginas. Longa vida ao César, ao Ailton e ao Sacada Literária.