Sacada Literária

Cultura, crítica e divulgação

CAMA DE GATO – 4 poemas de MICAELA TAVARES

 

Matilde Campilho

 

buscar no afeto um sinal

caso desapareça, fitar os olhos em outra sensação

encarar a sinestesia como a um dilúvio

escrever poemas como quem lê em um trem: Walter Benjamin

mais um vencedor

filhos que voltam para casa

depois do amor despedaçar

são guerrilheiros

do afeto

a certeza da sensação pré-choro

me faz pensar em um livro que emprestei

e não devolveram

continuo firme como se o tivesse dado

sentei em uma cafeteria apenas para observar

a ingratidão do teu olhar

desconhecido

tu não me deves nada, eu não te devo tanto

somos ímpares em sermos nós e

mesmo assim, amanhã

posso te cativar a ponto

de necessitar

até mesmo

do teu

desprezo.

 

 

 

Roberto MATTA, Nous ne sommes pas au monde. Fonte: es.amorosart.com

 

 

Yasmin Nigri

 

 

aqueles dois carros que estacionaram

em frente a tua porta

são para que lembres

que não vais a lugar algum

sem que uma locomotiva

te transporte

aquelas folhas de papel em branco

em frente a teu computador

são para que lembres

que não escreves sem que haja algo

físico para sustentar a perda de

memória instantânea

da tua máquina

aquelas pessoas todas que estão arquivadas

nas tuas conversas de WhatsApp

já foram todas

imensamente importantes ou

anunciantes de produtos

que não te interessam

todas misturadas

em uma caixa in box

que faz lembrar o spam do e-mail

 

 

Mário Cesariny

 

 

convidei patrícia para assistir um filme

no cinema

a caminho discutimos sobre um antigo livro de Rimbaud

patrícia insistia que a tradução havia sido desviada

achei ousado patrícia falar de uma obra assim

o que diria do filme hollywoodiano que escolhi

mas o que me preocupou aos montes

foi a chuva que cairia depois da sessão

o que nos obrigaria a conversar novamente

sobre a saison ou a cerveja no inferno

de Rimbaud

 

 

ROBERTO MATTA, Sin título, de la Carpeta Une Saison en Enfer, 1978

 

 

Adília Lopes

 

 

está vendo toda essa bagunça?

perdi meu calendário

e agora orno o tempo

com as mãos

coloco a carroça frente aos bois como fazia meu pai

ao tentar explicar

que não se atentava a prazos

esqueci que a febre da outra noite era

causada de dores emocionais

não manipulam mais remédios de fazer dormir

e agora

já não sei mais se hoje é ontem

ou será amanhã

a única coisa que me afirma agora

é que sei onde estou: no brasil

 

 

C. H.

 

O mar estava mexido

 deu pra nadar

só que mais devagar

onda sobre onda

sem alcançar o ponto final

com tanta pressa

isso significa

que a vontade de chegar

só aumenta

mesmo tão longe

não pegar um barco

nadar nadar nadar & nadar

que bonito isso: nadar

até chegar

perto dos teus olhos

da tua boca

e mesmo assim

anunciar – ainda nado, daqui nada

porque bem mais vale a pena a vista.

 

 

*

 

 

 

 

Micaela Tavares mora na Ilha de São Luís do Maranhão, seu primeiro livro, Tenho reparado nos ipês pela cidade (2021) foi publicado pela Editora Folheando, também publicou Falésia (2022) a partir da seleção da Lei de acesso à cultura Aldir Blanc pela SECMA. Estudante de Direito e pesquisadora de direitos LGBTQ+.