Sacada Literária

Cultura, crítica e divulgação

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As Vozes que nos guiam: A Inveja de um escritor diante dos seus pares

César Borralho

 

Todo escritor quer ser famoso. Minimamente almeja algum reconhecimento e um provável lucro financeiro. Escrever razoavelmente bem requer talento e dedicação. Publicar é uma empresa dispendiosa e imprevisível. Reconhecimento ocorre quando o talento é impresso nas páginas do tempo e ocupa o espaço. O lucro vem com o sucesso de vendas. Vender é um talento mais promissor do que escrever e publicar, independente da excelência  ou qualidade questionável do produto.

Alguém escreve. A editora publica. O lançamento acontece. As pessoas compram. Outras tantas elogiam publicamente, imprimem um selo de certificação e algumas outras desaprovam educadamente ou sem o menor pudor, à distância. Esse universo é tripartite: o silêncio, os apoiadores e os detratores. Não existe crítica neutra pelo mesmo motivo que não há neutralidade científica.

Ninguém diz que publicar equivale a dar o rosto ao beijo, o corpo aos abraços, mas se faz uso corrente da expressão “lançar um livro é colocar a cara à tapa”. É o mesmo que colocar um alvo nas costas na certeza das flechas que foram confeccionadas antes mesmo do livro. Alguém cujo talento eu não aprovo por uma razão que desconheço. Não sei se é porque é muito jovem, se está na meia-idade ou porque é muito experiente, se é porque possui condições financeiras favoráveis ou até mesmo desfavoráveis para transitar no meio, ou se é porque é autodidata, um acadêmico estudioso ou professor bastante titulado, se é porque é estranho, introspectivo ou porque é muito comunicativo e chato, se é porque “se acha” ou porque se encontrou, ou simplesmente porque não sou eu.

É possível que alguém mantenha neutralidade diante do talento, esforço e conquistas alheias. Essa imparcialidade, se não for indiferença distraída, revela uma maturidade emocional e um senso de equilíbrio. No entanto, em determinadas situações, pode surgir a necessidade de se aproximar e buscar uma associação laboral e até mesmo afetiva para fomentar o próprio desenvolvimento técnico e humano, reconhecendo as virtudes presentes no outro. Infelizmente, ao se espelhar nas realizações do outro e ter consciência dos próprios limites, pode-se acender a chama oculta da ira, aquela que arde nas profundezas do ser e, ao invés de estímulo para o próprio crescimento, esses sentimentos podem desencadear, devido à fraqueza de espírito, a necessidade injustificada de atacar, difamar e até mesmo destruir o outro movido por ressentimento e inveja. A falsa associação é a mais perigosa, pois pode ser uma máscara para o confronto premeditado e sem aviso prévio de guerra.

A arte é o campo da contemplação da beleza e o campo minado da inveja. A inveja reverbera vozes na nossa cabeça. É preciso desconfiar dessas vozes fáceis, buscar a aceitação dos acontecimentos, perseguir a beleza que há nas coisas.

As vozes que ressoam em nossas mentes podem ser um dom enigmático ou uma cruel perdição, dependendo de como nos convocam para dançar ou para silenciar a melodia.

No meio da beleza e do talento de nossos colegas, a sombra da inveja pode emergir. É uma verdade amplamente reconhecida que a inveja pode abalar a alma de qualquer indivíduo. Os escritores, seres sensíveis e apaixonados pela palavra escrita, não são imunes a essa emoção corrosiva. Ao se depararem com escritores talentosos, tanto aqueles que se consideram novatos como os que se consideram mestres, podem adentrar um labirinto inescapável que sufoca sua própria criatividade. Permitir-se ser afetado negativamente diante do talento alheio pode confinar o pensamento, acorrentar o intelecto, enclausurar a imaginação e corroer a confiança necessária para encontrar seu canto interior, seu ser mais autêntico, seu eco mais verdadeiro, seu timbre único.

O sono da razão engendra monstros, Francisco Goya, 1799

Ah, essas vozes na cabeça… nos transportam para os mundos imaginários que forjamos em nossas mentes, onde tudo arde, tudo fere, onde facilmente qualquer encanto do outro nos abre a carne e nos torna vulneráveis. Elas se assemelham a um enxame dentro de nossa cabeça, zumbindo incessantemente, ocupando todo o espaço, impedindo o silêncio e a paz. Cada uma dessas vozes anseia por impor sua opinião destrutiva, seus desejos nocivos. Ruminamos como cervos, mas não conseguimos digerir, apenas mastigamos a mesma vaidade, o mesmo desprezo pela sombra que o outro lança sobre nós, a mesma fúria indigesta, o mesmo bagaço da cana-sem-açúcar do fracasso.

É fundamental ter cautela para não sucumbir ao veneno da inveja. Ah, essas vozes na cabeça… podemos ouvi-las com atenção, aprendendo a controlá-las e transformá-las em nossas aliadas. Ao dominá-las, talvez consigamos criar um mundo mais equilibrado em nossa mente.

Somos seres humanos, portanto, imperfeitos e errar faz parte da jornada, mas podemos encontrar um equilíbrio entre o que queremos dizer, o que realmente dizemos e como o expressamos pode ser uma via de compreensão para os conflitos que estão do lado de dentro e não fora de nós.

Quando nos inspiramos pelo talento alheio, o sucesso dos outros se torna um guia para superarmos nossos próprios limites. Ao encontrar na habilidade do outro a faísca para aprimorar nossa técnica, abrimos caminho para a evolução de nossa própria obra. Assim, o sucesso do outro se transforma em um chamado para superação e crescimento criativo.

O verdadeiro desafio está em abraçar a inveja como um lembrete de que o caminho da escrita é um processo contínuo de aprendizado e evolução. Reconhecê-la como uma oportunidade para refletir, aprender e redescobrir sua paixão pela escrita. Canalizar essa energia para forjar seu estilo, sua narrativa e seu próprio legado. Usá-la como motivação para conquistar seu lugar ao lado dos escritores que o inspiram.

Há uma voz que se destaca, nos chamando para fora deste labirinto mental e nos conduzindo a novos horizontes. É a voz da criatividade, da imaginação, que nos convida a voar além das limitações e dos medos. Devemos seguir essa voz, mesmo que as outras continuem a zumbir. Pois é ela que nos dá coragem e inspiração para enfrentar os desafios da vida e transformar nossas vozes interiores em arte.

Ah, essas vozes na cabeça… Acho que alguém que as controlou muito bem criou uma editora no Brasil com esse nome.

 

*Poeta, filósofo