Maria Helena Nascimento Conceição
Caro leitor, este texto não é para você se sentir pressionado, negligente ou até mesmo criticado, seu intuito é apenas provoca-lo a uma simples, ou quem me dera, uma profunda reflexão sobre a disseminação da presença das literaturas africanas de expressão em Língua Portuguesa dentro e fora das nossas universidades, dos cursos de Letras, das nossas salas de aula de educação básica, nas nossas bibliotecas intimistas em nossas casas, enfim, no nosso círculo cultural de modo geral.
Este ano, completamos 20 anos que foi sancionada a lei nº 10.639/2003, constituindo que nos“estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira”. A referida lei ainda enfatiza que “os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras”. Assim, não podemos ignorar que a lei é enfática ao declarar explicitamente o estudo desta literatura afro-brasileira. Todavia, amplia-se ainda mais esta perspectiva da valorização africana quando é citado ainda que o conteúdo programático “incluirá o estudo da História da África e dos Africanos”.
Pois bem, chegamos onde gostaríamos. Não só o estudo do continente africanofaz-se necessário, mas os pormenores elementares que compõem as múltiplas configurações culturais e identitárias deste continente. Em se tratando dos países africanos de Língua Portuguesa, não podemos ignorar o fato da aproximação histórica e social do Brasil com estes. Séculos de opressão colonizadora, escravidão, guerras civis sangrentas que duraram anos, censura, usurpação de costumes, línguas, crenças e identidade foram algumas das muitas marcas sentidas por países colonizados pelos portugueses. Só conseguiremos realmente entender a dimensão deste caos para estes países se dedicarmos tempo de estudo e pesquisa suficiente para conhecer, ainda que superficialmente, a história de colonização e o processo de independência por trás deles. É impossível conhecer um pouco da história e não mudar a perspectiva diante do que vemos e ouvimos falar sobre a cultura africana.
Repito! É necessário dedicar-se a conhecer para então compreender o processo que desencadeou a formação de um sistema literário nestes países, a saber, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe.
São países com cerca de cinco séculos de colonização, com forte presença do tráfego negreiro e outras explorações, mas com nativos prontos a lutarem por sua identidade nacional, embora tivessem que ser submetidos a massacres em diversas guerras civis. Movimentos ideológicos e anticolonialistas surgiram no processo de independência e com eles uma literatura genuinamente nacional foi se solidificando para disseminar os ideais libertários, não obstante correndo o risco de serem censurados e apreendidos, os textos literários já refletiam o desejo de emancipação política em cada um destes países.
É nesse desejo por libertação e construção identitária que se configura e sistematiza-se, embora que recentemente, se comparado ao Brasil por exemplo, o sistema literário dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa – PALOP. Neste processo não podemos ignorar o fato que, em alguns países já existia a circulação de textos informativos e literários no período colonial antes das manifestações de guerras por independência, todavia, é a partir do sentimentalismo anticolonial que principalmente a presença de muitos poetas tornou-se necessária para o fortalecimento do sistema literário local.
Não só a poesia ganha espaço neste cenário, mas contos e romances também carregam em seus textos a manifestação ideológica de um povo em busca de reconhecimento e fortalecimento do sentimento de africanidade. Ao ler as obras dos principais autores e autoras destes países conseguimos facilmente perceber que quase tudo o que se produz está diretamente ligado à esta africanidade, moçambicanidade, caboverdianidade… os textos são carregados com os reflexos cotidianos que seus escritores vivenciaram durante o processo de colonização, independência e até mesmo pós independência. Digo pós independência, porque todos os países do PALOP tiveram sua independência política muito recentemente, quase totalidade em 1975 e foi a partir deste marco que a liberdade de escrita, inclusive temática, começou a aflorar.
Para que não fique só em minhas tecituras, trago aqui um trecho do poema Súplica da moçambicana Noémia de Sousa,
Tirem-nos tudo,
mas deixem-nos a música!
Tirem-nos a terra em que nascemos,
onde crescemos
e onde descobrimos pela primeira vez
que o mundo é assim:
um labirinto de xadrez…
[…]
Podem desterrar-nos,
levar-nos
para longes terras,
vender-nos como mercadoria,
acorrentar-nos
à terra, do sol à lua e da lua ao sol,
mas seremos sempre livres
se nos deixarem a música!
Que onde estiver nossa canção
mesmo escravos, senhores seremos;
e mesmo mortos, viveremos.
E no nosso lamento escravo
estará a terra onde nascemos,
a luz do nosso sol,
a lua dos xingombelas,
o calor do lume,
a palhota onde vivemos,
a machamba que nos dá o pão!
Por fim, é necessário desmistificar conceitos enraizados da literatura africana, que esta, assim como seu continente, não possui beleza. Pelo contrário, é possível encontrar beleza nos textos poéticos com presença paisagística, natural e até nas escritas mais sensíveis, que demonstra a alegria, a garra e a paixão do escritor pelo seu povo. Assim, convido você caro leitor, a conhecer na íntegra os textos africanos de expressão em LP e se apaixonar pelos poemas, contos e romances que compõem um colorido mosaico cultural, chamado África Portuguesa e em seguida volte a este singelo texto e concorde ou não comigo diante do que aqui expus. Não indicarei nesta ocasião nenhum escritor para não me tornar injusta em deixar algum de fora. Boa leitura!
Referências
BRASIL. Planalto. Lei nº 10.639 de 09 de janeiro de 2003. Disponível em: <<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm>>. Acessado em 18 de julho de 2023.
PEREIRA, Luís Araujo. Ermira: Cultura, ideias e redemoinhos. Disponível em <http://ermiracultura.com.br/2017/11/25/cinco-poemas-de-noemia-de-sousa/>>.Acessado em 18 de julho de 2023.
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