Breve seleção de poemas de livros recentes da poderosa literatura da agoridade [maranhense/brasileira…] que enriquecem o cenário atual e precisam ir além da estante (em ordem aleatória).
SAMUEL MARINHO
Livro: Antiquário Moderno (Penalux, 2023)
metaverso
quando as formas de interação bidimensionais estiverem
totalmente saturadas
e a distância entre o ser o nada for plenamente resolvida
seremos claramente a imagem do que antes já projetávamos
corpos rarefeitos em avatares simulacros
dançando esguios por entre nuvens de metadados
zumbis em tela de realidade aumentada
uma live pra quando eu morrer
o mundo veloz
numa tela veloz
da vida
intocável
contrasta agora
mais do que nunca
com esta minha voz
lenta
quase muda
que outrora desnuda
até quis
se mostrar
o tempo
poeta
é feroz
descompasso
no mundo
sem espaços
de silêncio
fotografia para perfis fakes
perdi o tempo da verdade
quando acordei era tarde
vertigem, amor, cansaço, saudade
as andorinhas cantavam um réquiem bonito
de cima eu avistava bem nítidos
os estilhaços do livro das virtudes
já era hora de resolver as ilusões
e acalmar o corpo das inquietudes
a imagem recolhida do meu aparente fracasso
transcendia enfim o reflexo enviesado das atitudes
(é que os espelhos sempre levam aos espaços
falsas impressões de amplitude)
HAGAMENON DE JESUS
Livro: 21 (Edição do autor, 2021)
o homem no espelho
Sabe, sou um homem de 55 anos,
e o que tenho?
Uma poltrona,
que eu já sei meio velha, bem antiquada,
mas de mim há muito conhecida, bastante confortável,
e isto me agrada.
Um estranho crucifixo,
bem ali, dependurado, logo à entrada do quarto,
e eu já nem sei onde foi comprado,
mas que me acalma e conforta
a minha incredulidade
e isso me agrada.
Tenho uma cafeteira
dessas bem baratas, e até
meio desquarada,
mas que deixa meu café bem quente
com um cheiro saboroso
à temperatura exata,
e isso me agrada.
É bem verdade
que nunca quis ter carro
e outras comodidades
mas tenho todas estas coisas
vitais e preciosas que
(mesmo que você não saiba)
muita gente não tem
e, se não as temos,
a vida perdeu seu fio de prata.
Ah, tenho ainda minha bike
com sua cor prateada,
alguns últimos
raios de sol, colorindo a estrada,
e um pouco de tempo
entre as quatro
e o cair da tarde.
E isso me basta.
esfinge desimportância
O amor
também é
uma possibilidade de ausência
arranha as margens
do que posso
do que sou
Ele singra este momento,
esfinge desimportância,
e desintegra
o padrão fashion dos ternos
valentino,
o amor ainda é
uma derrapada de ferráris,
precisa ser
O amor
ainda
(desintegra o homem)
faz do arbítrio uma sina
ou (pelo menos) escorrega
nas sarjetas
o pé tardio que buscou consolo na Faustina
coleção
Ao que fez de mim
mulher
colorida e aberta,
asa delta
deixou de mim
no seu quadro flores, e minha queda
cores
espalhadas pelo chão
E eis-me aqui,
colorida e sem vida:
borboleta de coleção.
DYL PIRES
Livro: Ninguém quer o futuro (Hecatombe, 2023)
para orides fontela
como se faltasse altura
para a larga subjetividade de uma época
(e falta!)
como se não soubéssemos
mais o que falar do vazio de si
(e não sabemos!)
como se das alturas nos acusassem
uma necessidade brutal de redesenharmos o sensível
(e nos acusam!)
como se a terra sempre te puxasse para baixo
(e puxa!)
metrópoles
as metrópoles imensamente populacionais
são uma forma de tapear a finitude
por aqui você encontra
sempre pessoas com malas nas ruas
há uma névoa constante movida pelo sentimento
de estar diante de pessoas de partida
uma composição da paisagem na qual multidões
é o mínimo que se tem para falar de indivíduos
e que se sabe existindo como um silêncio
[ainda não ocupado
retratos 3 x 4
Um palhaço. O ridículo de todos os dias é que
dá olhos de ver. E do que restou, há uma lona
soterrada somente pela ideia de um trem que
avançaria sobre ela. Mas para onde foi o poe-
ma piada? O poema de uma Era? O poema já
era! Mas a Era considera que o uso do lugar
político já faz o artista. Mas a questão é que o
poema-piada quando surgiu não fez artista os
artistas que o fizeram. E agora, em nossa Era,
foi-se o riso e ficaram as piadas.
NEURIVAN SOUSA
Livro: Flor de Malagueta (Patuá, 2023)
voyeurismo
à janela do espanto
vejo os seios de celina
apontados para o dia
são duas mangas rosas
na madurez da imponência
a entortar a língua do vento
carne e córnea colidem
num átimo de telepatia
onde a mão não alcança
e há nos meus olhos
a estilingue da malícia
que a cobiça estica
com a pedra da fome.
capri
os bicos dos teus seios
dois morangos maduros
numa suculência aromática
exposta à perdição da língua
dois rubis grudados no busto
da tua nudez escandinava
faço-me criança no toque
gravitando as tuas glândulas
e na nervura do teu relevo
revelo a fome das intenções
o doce e ácido na oferta
de equilíbrio ao paladar
teus seios a ceia ondei deixo
o selo do que nos consome.
proficiência
minha língua
– artefato
pró-zíper –
só reconhece
sua proficiência
quando exerce
esse artifício
de deixar
nos teus olhos
uma fogueira
apagada.
CLÁUDIO GUERRA TERÇAS
Livro: Caos (Folheando, 2022)
malas de viagem
morremos todos – o tempo todo –
nessa guerra de todos contra todos!
certas palavras estão trancadas
em malas de viagem que não viajam nunca
abandonadas em aeroportos clandestinos
jamais abertas para a entrada de luz e ar
nem mesmo as palavras amor e liberdade
que estão trancadas juntas com a verdade
podem sair e fluir livres como devem ser
te olha no espero e não chora
– nessa guerra de todos contra todos –
e quando eu chamar pela doçura do teu nome
me dá tuas mãos em nuvens soltas e vamos
peixeira
a lâmina na mão
o sangue no chão
vermelho no branco tecido
resgate da honra agora perdida na morte
países murados
cidades muradas
corações murados
a vida blindada contra a vida
monitoramento diuturno
filas de fuga pelo medo
quem deu o primeiro tiro
a morte é certa a sorte incerta
o corpo sangra o corte aberto
a porta aberta a fuga certa
o beijo curto a distância longa
(essa árvore existe para que a veja e depois morra)
anabiose
resta-me flutuar
destino
quatro ruas principais
se cruzam solenemente em minha mão
quatro linhas que desenham a letra M
um presságio estranho e inadiável
marcado para morrer
LUIZA CANTANHEDE
Livro: Plantação de horizontes (Penalux, 2023)
um espelho no chão
A velha
Cabocla
Que habita em
Mim
Constrói
Em meu peito
A dinastia da
Terra
O som dos
Tambores
E os pés
Ungidos
Pela resistência
preguei os olhos na cruz
O amor me achou
Quando a vida me pôs
de joelhos
E já não havia
Mais cadáveres
Para velar
Chegou igual
aos meus remendos:
sem razão
de ser.
abaporu
Para Joel DuMara
A fome que come gente
Nos olhos do Abaporu
O sol na epiderme
O suor afogando a pele
Antes das rezas
Outros dias nascerão
Para o cansaço
“O homem plantado na terra”:
Unhas encravadas no contorno
Do tempo.
O homem pintando o sertão:
Seca, estrume, gibão.
Mão de pilar, mandacaru
cansanção
Terra batida
Barro vermelho
Água salobra
Tudo é tela
Que nos atropela.
EVILÁSIO JÚNIOR
Livro: Antropologia da terra (Penalux, 2023)
fugere urbem
um banho de igarapé
numa tarde quente,
um cheiro de terra molhada perfuma a alma,
o ritmo cadenciado das batidas do pilão,
o arroz soltando da casca,
o paiol ao longe,
a revoada de pássaros,
o som da natureza ao amanhecer
e ao anoitecer.
enquanto isso,
na cidade,
o barulho do caos.
lavadeiras
as lavadeiras subiam
e desciam as ladeiras
com pés resistentes
como o pau d’arco
as crianças iam grudadas nos quartos
e as trouxas de roupa coravam a cabeça
das mulheres lavadeiras.
ciclos de povoamento
somos filhos dos ciclos
de povoamento
que por aqui passaram
e deixaram
todo um modo de ser.
temos olhos de lamparinas,
cabelos de arame farpado,
braços de mão de pilão,
garras de unha-de-gato,
pernas de estacas fincadas,
pés de argila ou de barro,
corpo de casa de taipa,
carne de casca de pau,
espírito de alma-de-gato.
a cangalha
a cangalha está pendurada
na parede da memória.
*Seleção de Antonio Aílton
**Finalmente concluí essa postagem que estava querendo fazer há algum tempo, na verdade, o que foi possível fazer neste momento. Mostrar alguns poemas, pelo menos o suficiente para mergulhar na escrita desses poetas tão importantes para nós, no panorama atual da poesia brasileira, maranhense. Trata-se de livros que recebi/adquiri do ano passado para cá, e que me enchem olhos e coração, estimulando para continuar a estrada, porque estes são porretas: Samuel Marinho, Hagamenon de Jesus, Dyl Pires, Neurivan Sousa, Cláudio Terças, Luiza Cantanhede e Evilásio Junior.
Seleção estupenda! Grandes nomes que trazem uma poesia pujante. Orgulho do nosso Maranhão!
Gostei muito da seleção e dos poemas. Uma turma que muito bem pauta a poesia de qualidade que vem sendo feita no Brasil.
A poesia é sempre linda no poema de todos meus confrades poetas. Pois saiu da inspiração da sua mente coração de um sentimento que transcendente. Às vezes não toca o sentimento de algum leitor . Mas sempre tocará o meu.
Privilégio enorme ser publicada neste portal e referendada por Antonio Ailton, este grande pesquisador/escritor que tanto admiro! Minha gratidão e alegria em estar ao lado desses grandes poetas admiráveis!