Sacada Literária

Cultura, crítica e divulgação

Fonte: Black Mirror - Netflix

POESIA DA AGORIDADE – 7 poetas maranhenses

Breve seleção de poemas de livros recentes da poderosa literatura da agoridade [maranhense/brasileira…] que enriquecem o cenário atual e precisam ir além da estante (em ordem aleatória).

 

 

 SAMUEL MARINHO

Livro: Antiquário Moderno (Penalux, 2023)

 

 

metaverso

 

quando as formas de interação bidimensionais estiverem

totalmente saturadas

 

e a distância entre o ser o nada for plenamente resolvida

seremos claramente a imagem do que antes já projetávamos

 

corpos rarefeitos em avatares simulacros

dançando esguios por entre nuvens de metadados

 

zumbis em tela de realidade aumentada

 

 

 

 

 

uma live pra quando eu morrer

 

 o mundo veloz

numa tela veloz

 da vida

  intocável

   contrasta agora

 mais do que nunca

    com esta minha voz

 lenta

   quase muda

 que outrora desnuda

até quis

 se mostrar

 o tempo

poeta

 é feroz

descompasso

no mundo

sem espaços

           de silêncio

 

 

 

fotografia para perfis fakes

 

perdi o tempo da verdade

quando acordei era tarde

 

vertigem, amor, cansaço, saudade

as andorinhas cantavam um réquiem bonito

 

de cima eu avistava bem nítidos

os estilhaços do livro das virtudes

 

já era hora de resolver as ilusões

e acalmar o corpo das inquietudes

 

a imagem recolhida do meu aparente fracasso

transcendia enfim o reflexo enviesado das atitudes

 

(é que os espelhos sempre levam aos espaços

falsas impressões de amplitude)

 

 

 

 

 

 

 

 

 HAGAMENON DE JESUS 

Livro: 21 (Edição do autor, 2021)

 

 

 

 

o homem no espelho

 

Sabe, sou um homem de 55 anos,

e o que tenho?

Uma poltrona,

que eu já sei meio velha, bem antiquada,

mas de mim há muito conhecida, bastante confortável,

e isto me agrada.

Um estranho crucifixo,

bem ali, dependurado, logo à entrada do quarto,

e eu já nem sei onde foi comprado,

        mas que me acalma e conforta

a minha incredulidade

e isso me agrada.

Tenho uma cafeteira

dessas bem baratas, e até

meio desquarada,

mas que deixa meu café bem quente

com um cheiro saboroso

  à temperatura exata,

      e isso me agrada.

É bem verdade

que nunca quis ter carro

       e outras comodidades

mas tenho todas estas coisas

vitais e preciosas que

(mesmo que você não saiba)

muita gente não tem

e, se não as temos,

a vida perdeu seu fio de prata.

Ah, tenho ainda minha bike

com sua cor prateada,

        alguns últimos

raios de sol, colorindo a estrada,

e um pouco de tempo

entre as quatro

e o cair da tarde.

E isso me basta.

 

 

 

 

esfinge desimportância

 

        O amor

      também é

uma possibilidade de ausência

        arranha as margens

do que posso

      do que sou

Ele singra este momento,

        esfinge desimportância,

e desintegra

        o padrão fashion dos ternos

    valentino,

o amor ainda é

    uma derrapada de ferráris,

     precisa ser

    O amor

          ainda

    (desintegra o homem)

         faz do arbítrio uma sina

         ou (pelo menos) escorrega

nas sarjetas

         o pé tardio que buscou consolo na Faustina

 

 

 

 

coleção

 

       Ao que fez de mim

 mulher

colorida e aberta,

     asa delta

deixou de mim

    no seu quadro flores, e minha queda

        cores

     espalhadas pelo chão

     E eis-me aqui,

     colorida e sem vida:

     borboleta de coleção.

 

 

 

 

 

 

 

 

DYL PIRES

Livro: Ninguém quer o futuro (Hecatombe, 2023)

 

 

 

para orides fontela

 

 

como se faltasse altura

para a larga subjetividade de uma época

(e falta!)

como se não soubéssemos

mais o que falar do vazio de si

(e não sabemos!)

como se das alturas nos acusassem

uma necessidade brutal de redesenharmos o sensível

(e nos acusam!)

como se a terra sempre te puxasse para baixo

(e puxa!)

 

 

 

metrópoles

 

 

as metrópoles imensamente populacionais

são uma forma de tapear a finitude

por aqui você encontra

sempre pessoas com malas nas ruas

há uma névoa constante movida pelo sentimento

de estar diante de pessoas de partida

uma composição da paisagem na qual multidões

é o mínimo que se tem para falar de indivíduos

e que se sabe existindo como um silêncio

                                                  [ainda não ocupado

 

 

 

retratos 3 x 4

 

 

Um palhaço. O ridículo de todos os dias é que

dá olhos de ver. E do que restou, há uma lona

soterrada somente pela ideia de um trem que

avançaria sobre ela. Mas para onde foi o poe-

ma piada? O poema de uma Era? O poema já

era! Mas a Era considera que o uso do lugar

político já faz o artista. Mas a questão é que o

poema-piada quando surgiu não fez artista os

artistas que o fizeram. E agora, em nossa Era,

foi-se o riso e ficaram as piadas.

 

 

 

 

 

 

 

 

NEURIVAN SOUSA

Livro: Flor de Malagueta (Patuá, 2023)

 

 

 

 

voyeurismo

 

à janela do espanto

vejo os seios de celina

apontados para o dia

são duas mangas rosas

na madurez da imponência

a entortar a língua do vento

carne e córnea colidem

num átimo de telepatia

onde a mão não alcança

e há nos meus olhos

a estilingue da malícia

que a cobiça estica

com a pedra da fome.

 

 

 

capri

os bicos dos teus seios

dois morangos maduros

numa suculência aromática

exposta à perdição da língua

dois rubis grudados no busto

da tua nudez escandinava

faço-me criança no toque

gravitando as tuas glândulas

e na nervura do teu relevo

revelo a fome das intenções

o doce e ácido na oferta

de equilíbrio ao paladar

teus seios a ceia ondei deixo

o selo do que nos consome.

 

 

 

 

proficiência

minha língua

– artefato

pró-zíper –

só reconhece

sua proficiência

quando exerce

esse artifício

de deixar

nos teus olhos

uma fogueira

apagada.

 

 

         Eliseu Visconti, Busto de mulher, 1895

 

 

 

 

 

CLÁUDIO GUERRA TERÇAS

Livro: Caos (Folheando, 2022)

 

 

 

 

malas de viagem

 

morremos todos – o tempo todo –

nessa guerra de todos contra todos!

certas palavras estão trancadas

em malas de viagem que não viajam nunca

abandonadas em aeroportos clandestinos

jamais abertas para a entrada de luz e ar

nem mesmo as palavras amor e liberdade

que estão trancadas juntas com a verdade

podem sair e fluir livres como devem ser

te olha no espero e não chora

– nessa guerra de todos contra todos –

e quando eu chamar pela doçura do teu nome

me dá tuas mãos em nuvens soltas e vamos

 

 

 

 

peixeira

 

 

a lâmina na mão

o sangue no chão

vermelho no branco tecido

resgate da honra agora perdida na morte

países murados

cidades muradas

corações murados

a vida blindada contra a vida

monitoramento diuturno

filas de fuga pelo medo

quem deu o primeiro tiro

a morte é certa                  a sorte incerta

o corpo sangra                  o corte aberto

a porta aberta                   a fuga certa

o beijo curto                      a distância longa

(essa árvore existe para que a veja e depois morra)

anabiose

resta-me flutuar

 

 

 

 

 

destino

 

quatro ruas principais

se cruzam solenemente em minha mão

quatro linhas que desenham a letra M

 

um presságio estranho e inadiável

marcado para morrer

 

 

FONTE: alexa meade – A sintonia blog

 

 

 

 

 

LUIZA CANTANHEDE

Livro: Plantação de horizontes (Penalux, 2023)

 

 

 

um espelho no chão

 

 

A velha

Cabocla

Que habita em

Mim

Constrói

Em meu peito

A dinastia da

Terra

O som dos

Tambores

E os pés

Ungidos

Pela resistência

 

 

 

 

preguei os olhos na cruz

 

 

O amor me achou

Quando a vida me pôs

de joelhos

E já não havia

Mais cadáveres

Para velar

Chegou igual

aos meus remendos:

sem razão

de ser.

 

 

 

 

abaporu

 

Para Joel DuMara

 

 

A fome que come gente
Nos olhos do Abaporu

O sol na epiderme

O suor afogando a pele

Antes das rezas
Outros dias nascerão
Para o cansaço

“O homem plantado na terra”:
Unhas encravadas no contorno
Do tempo.

O homem pintando o sertão:
Seca, estrume, gibão.
Mão de pilar, mandacaru
cansanção

Terra batida
Barro vermelho
Água salobra

Tudo é tela
Que nos atropela.

 

 

 

Selma Bezerra (RN) – Tarsilianas

 

 

 

 

 

EVILÁSIO JÚNIOR

Livro: Antropologia da terra (Penalux, 2023)

 

 

 

 

fugere urbem

 

 

um banho de igarapé

numa tarde quente,

um cheiro de terra molhada perfuma a alma,

o ritmo cadenciado das batidas do pilão,

o arroz soltando da casca,

o paiol ao longe,

a revoada de pássaros,

o som da natureza ao amanhecer

e ao anoitecer.

enquanto isso,

na cidade,

o barulho do caos.

 

 

 

 

lavadeiras

 

as lavadeiras subiam

e desciam as ladeiras

com pés resistentes

como o pau d’arco

as crianças iam grudadas nos quartos

e as trouxas de roupa coravam a cabeça

das mulheres lavadeiras.

 

 

 

 

 

ciclos de povoamento

 

 

somos filhos dos ciclos

de povoamento

que por aqui passaram

e deixaram

todo um modo de ser.

temos olhos de lamparinas,

cabelos de arame farpado,

braços de mão de pilão,

garras de unha-de-gato,

pernas de estacas fincadas,

pés de argila ou de barro,

corpo de casa de taipa,

carne de casca de pau,

espírito de alma-de-gato.

 

 

 

 

a cangalha

a cangalha está pendurada

na parede da memória.

 

 

Alfredo Vieira – paisagens rurais – Fonte: conhecaminas.com

 

 

 

 

 

 

 

*Seleção de Antonio Aílton

**Finalmente concluí essa postagem que estava querendo fazer há algum tempo, na verdade, o que foi possível fazer neste momento. Mostrar alguns poemas, pelo menos o suficiente para mergulhar na escrita desses poetas tão importantes para nós, no panorama atual da poesia brasileira, maranhense. Trata-se de livros que recebi/adquiri do ano passado para cá, e que me enchem olhos e coração, estimulando para continuar a estrada, porque estes são porretas: Samuel Marinho, Hagamenon de Jesus, Dyl Pires, Neurivan Sousa, Cláudio Terças, Luiza Cantanhede e Evilásio Junior.