Sacada Literária

Cultura, crítica e divulgação

Monumento ao poeta Gonçalves Dias - Praça Gonçalves Dias/São Luís - MA - Foto: Antonio Aílton

GONÇALVES DIAS – Quando o Pássaro pousa na pausa da existência

Alberico Carneiro

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Por que o Sabiá vive, após 200 anos?

A obra literária do escritor maranhense, poeta Gonçalves Dias, se funda, por antecipação temporal, fora do contexto de seus contemporâneos, nos pressupostos da modernidade e pós-modernidade do poema e da poesia. Nele, portanto, a arquitetura do poema e o que nele possa haver de desvio de significados comuns, em expressão, para sentidos especiais, excepcionais ou extraordinários, se homologam numa simbiose de forma e conteúdo, no exercício do texto e seus interditos, conforme se pode conferir a partir do poema e da poesia da Canção do Exílio e ampliar para o campo da releitura de um ponto de vista da recriação pós-moderna no poema e na poesia de I-Juca-Pirama, contemplando o engenhoso estatuto da paródia e do minimalismo, bem como algumas pitadas do contraditório e da ironia.

Os textos de maior expressão do poeta Gonçalves Dias se destacam por subversão dos cânones oficiais e/ou tradicionais, tanto do ponto de vista da não regularidade estrófica, quanto na escolha dos motivos de sua inspiração, cujas bases são mitos brasileiros e as fontes são pinçadas da realidade de seres humanos mortais, cuja releitura, por um ponto de vista irônico e contraditório, não tem o viés dos mitos pagãos imortais gregos. Daí a genialidade do poeta Gonçalves Dias na escolha e transformação dos arquétipos e estratégias gregos no uso do aspecto paródico.

 

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Um poeta para além de orgulho & preconceito

Vista de São Luís do Maranhão, séc. XVII-XVIII. Gravura publicada no Atlas of Mutual Heritage, de Johannes Vingboons, c. 1665. Domínio público, Arquivo Nacional da Holanda.

É sabido que, por certidão de batismo, Antônio Gonçalves Dias nasceu no estado do Maranhão, no município de Caxias, em 10 de agosto de 1823 e morreu, não se sabe onde, quando e como, com precisão, embora haja conjectura sobre uma possível morte, durante o naufrágio de um navio, vindo da França, o Ville de Boulogne, que se rebentou na Croa dos Ovos, na praia dos Atins, em Cumã, no município de Guimarães, cujas circunstâncias da morte do cidadão são, histórica e de ponto de vista de verossimilhança, radicalmente contraditórias. O ser humano morre, mas há apenas notícia da bagagem, com uma mala de escritos, que foi, segundo Henriques Leal, possivelmente roubada e encontrada já em Alcântara, devassada por alguém que se apossa dos poemas e passa a publicá-los como se de sua autoria, desmascarado com ser medíocre. Como aquela mala fez o percurso de Guimarães a Alcântara? Também não há corpo, cadáver para o atestado de óbito, o que dá pista de uma certeza sob a máscara da suspeição. Conclusão, Gonçalves Dias, até hoje, não pôde merecer as honras de um túmulo, sequer como réplica das tumbas dos soldados desconhecidos. O mar da moral, também, é móvel.

Gonçalves Dias, o homem, o cidadão, era mestiço, mulato, filho bastardo de um português e de uma mestiça de índio e negro e, embora o poeta que habitava nele e, agora, habita e se hospeda entre nós, na obra literária que produziu, não tenha cor, raça, tamanho físico e não ocupe lugar no espaço, não era benquisto, naquela época, 1823-1864, por causa da discriminação e preconceito social da época, em Caxias, muito mais em São Luís, pela hereditariedade que carregava no sangue e na cor.

Em verdade, em verdade vos digo, em São Luís, Antônio Gonçalves Dias era, em razão do preconceito e discriminação de cor, raça, hereditariedade, um nome que quiseram à distância dos Livros de Linhagens e Nobiliários. Decorridos 200 anos do nascimento de Antônio Gonçalves Dias, já é tempo de resgatar a verídica história de sua vida, pondo a hipocrisia, as mentiras e os eufemismos de lado, já que seus poemas e sua poesia são, infinitamente, maiores que a transitoriedade e fugacidade das elites.

Hoje, o poeta e o homem Gonçalves Dias são, por jus a que já não se pode apor peneiras, reconhecidos; aqueles, detentores dos privilégios, jazem, por acreditarem nas aparências, na insignificância que os túmulos, em silêncio, descrevem.

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O Sabiá

 Busto Gonçalves Dias

Gonçalves Dias foi o primeiro escritor nacionalista brasileiro de expressão, aqui, e além fronteira, embora não tenha sido devidamente reconhecido cá, na época em que viveu, principalmente pelos seus contemporâneos, do Maranhão, jornalistas e escritores medíocres de carteirinha. Claro que houve exceções, mas raras, entre elas a do amigo e biógrafo Antônio Henriques Leal, além de seus contemporâneos de trabalho cultural e literário, na Europa, João Lisboa, Odorico Mendes etc. Sim, nacionalista, mas não no sentido oblíquo e dissimulado da conceituação que a classe política, a burguesia e a aristocracia deu a esse verbete, no contexto da escravidão do negro e do índio, com pressupostos que reproduziam claramente o ideário fascista e genocida.

O nacionalismo de Gonçalves Dias está justamente naquela parte que a dita nobreza rejeitava, já que esta não reconhecia o nacionalismo, senão como sinônimo de defesa da propriedade privada das elites, incluídos aí, como bens, escravos negros e índios, como privilégio comum ao topo da pirâmide social, excluindo o que consideravam a ralé, moeda de troca, das casas grandes e senzalas, em defesa irrestrita de seus Nobiliários e Livros de Linhagens. Ou vamos alegorizar a vexatória verdade com eufemismos? Portanto o nacionalismo de Gonçalves Dias apontava para rejeição ao maquiavélico, à discriminação estrutural, que não reconhecia o negro, nem o índio, senão como moeda de troca.

Gonçalves Dias não é, em sua obra literária, um escritor que brinda com a classe política ou com a burguesia e a aristocracia, muito pelo contrário, ele é um nacionalista convicto contra o nacionalismo hipócrita da falsa defesa da pátria, tradição, família e símbolos nacionais, cujos mentores legitimaram a exclusão e as exceções, sendo esse nacionalismo usado para fins escusos.

O que torna possível a sobrevivência da memória intelectual, poética e da própria biografia de Gonçalves Dias, após 200 anos da data de seu nascimento, do seu registro cartorial, é ele ter sido um subversivo em relação à relativização dos valores dos discursos oficiais e acadêmicos da sociedade de seu tempo, eivada de preconceitos, hoje em vias de desmascaramento, porque os critérios sobre valores da época do Império estão caducos, embora restem alguns resquícios da Monarquia, preservados no contexto da República, como privilégios, mordomias e alguns costumes próprios da vida palaciana, como oligarquias, perpetuidade ou cargos vitalícios e imortalidade etc.

A memória intelectual e poética de Gonçalves Dias é reconhecida e o impõe vivo, após 200 anos de seu nascimento, porque ele, em vida via obra literária, foi um contestador, alguém que desafinava em relação ao contexto da patriotada fascista de seu tempo, doutorada em sofismas, em maquiavelismo. Ele, pelo contrário, foi um escritor inovador, antecipador, contestador, contra manipulações. Desse ponto de vista, Gonçalves Dias foi um escritor marginal, solitário, fora dos conchavos de panelinhas e igrejinhas, já que surgiu após as academias dos Seletos, dos Felizes, dos Renascidos, da Ulissiponense e dos Esquecidos e jamais as referendou. Livrou-se de ser contemporâneo desse mal epidêmico da primeira metade do século XIX, em Portugal e no Brasil.

À distância das associações e agremiações pseudoliterárias, manifestou-se em defesa de causas que os ditos nacionalistas de seu tempo rejeitavam, como a inclusão do índio como protagonista e personagem de obras literárias. Em alguns de seus poemas os silvícolas assumem os papéis principais, de destaque, como nos épicos I-Juca-Pirama e Os Timbiras, onde não há a presença do dito civilizado, cognominado de homem branco, nem como coadjuvante ou figurante, já que os protagonistas, personagens, os atores estão a serviço de quem escreve, alguém que é simultaneamente índio e negro, justamente o que a sociedade burguesa e aristocrática de seu tempo, preconceituosa, rejeita. Assim, Gonçalves Dias usa outros códigos de nacionalismo, que apontam seus ancestrais como as bases dos mitos da Literatura Nacional. Ele já propugnava por uma sociedade inclusiva, baseada na acessibilidade ao habitante autóctone do Brasil.

Em seus poemas indianistas e em sua obra etnológica, Brasil e Oceania, deu visibilidade ao índio, como ser humano talentoso, habilidoso, senhor de sua própria cultura e identidade, capaz de representar-se não como moeda de troca, mas como alguém que é detentor de um conhecimento natural de matemática, de linguagem, de artesanato, de arquitetura, de pintura, de ciência.

Gonçalves Dias foi, portanto, um nacionalista às avessas, quer dizer, contra os ditos nacionalistas, únicos que se consideravam dignos de fazer parte da civilização, com exclusão do índio e do negro, sufocados pela invisibilidade da escravidão.

A obra literária de Gonçalves Dias o impõe, no tempo em que viveu e hoje, como um escritor diferente de seus contemporâneos, portanto um antecipador, cuja obra, premonitória e profética, o mantém vivo, após 200 anos de seu nascimento, em exílio.

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Canção do exílio

O enfoque da Canção do Exílio vem aqui à tona, porque se impõe ainda hoje como o primeiro poema do Simbolismo no Brasil, embora, talvez, este aspecto não tenha sido abordado devidamente e, ainda que escrito aos 20 anos de idade do homem Gonçalves Dias, o poema é, também, por várias razões, o primeiro de linguagem modernista, no Brasil. Sobre o assunto, fiz um resgate no Anuário JP Guesa Errante 5, 2007, pp. 10-13, bem como do poema I-Juca-Pirama, pp 18-23.

O poema, revolucionário para sua época, tem um olhar estranho, desfamiliarizado e desenraizado, dizendo adeus para alguns códigos e cânones poéticos tradicionais e olhando para frente ao mesmo tempo, com aquele olhar enviesado de um poeta que tem plena consciência do riscado, ou seja, de que texto literário não existe sem o simulacro. E essa disposição deliberada para transgredir, violar, apostando maciçamente na mímesis, através da sugestão, da fruição e das aliterações, não soou como novidade e estranhamento, em 1843, no Maranhão, Brasil, mas teve eco em Portugal, cuja repercussão mereceu elogios  do escritor português Alexandre Herculano que, na época, saudou o poeta de Primeiros Cantos, colocando-o na categoria de uma nova voz no contexto da Literatura Brasileira e um exemplo para a Literatura Portuguesa que, então, passava por uma fase de apatia criativa ou decadência.

Qual foi a intencionalidade do poeta ao grafar Sabiá com maiúscula? Aí está o viés ou desvio do significado ou, mais precisamente, a significação conotativa por contiguidade, similaridade ou analogia: sabiá, um pássaro de canto diferenciado, especial, belíssimo, como o canto de um grande poeta: o Sabiá, com maiúscula do poema de Gonçalves Dias.

Por exemplo, os referenciais que dão maior expressividade poética ao texto não são substantivos ou verbos, como mais comumente acontece, mas advérbios e pronomes. Ou melhor, aqui, são os advérbios e os pronomes a razão da poesia, quer dizer, sem os advérbios onde, aqui, lá, cá, mais, sozinho; os possessivos minha e nosso e o demonstrativo tal não haveria poesia nenhuma. São eles que fazem com que as outras palavras funcionem de maneira especial.

 

É, através de repetições e reiterações, que o poeta obtém o máximo de resultados emotivos, inclusive, sem uso de adjetivo. Ingressando numa estrutura encadeada de sugestão e musicalidade, discrição e aliterações, procura expressar a nostalgia, a atmosfera de exílio e a saudade, de uma maneira discreta.

O poema de Gonçalves Dias não tem o derramamento saudosista e choroso de, por exemplo, um Casemiro de Abreu, um Álvares de Azevedo ou de um Fagundes Varela.

Ele não diz de maneira direta que tem saudade do Maranhão, Caxias ou São Luís. Usa de sugestões, símbolos, para serem decifrados e usufruídos:

                    Imagem: Google Street View – https://www.ipatrimonio.org/

 

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

As aves que aqui gorjeiam,

Não gorjeio como lá.

 

Há, também, nas entrelinhas, uma sutil ironia, um tom satírico,  sarcástico, o que é permitido a quem sabe exercer engenho e arte poética.

No poema em questão, ele nos convida a perceber que um substantivo comum pode passar à categoria de próprio. Sabiá, por exemplo. Por outro lado, que substantivos próprios podem ser representados por palavras acessórias ou de categorias secundárias, mas como essenciais. Por exemplo, Portugal está representado por aqui e e Maranhão ou Caxias ou Jatobá ou Laranjeiras, por . Por esse viés, Gonçalves Dias impregna palavras comuns, acessórias, de um potencial especial, extraordinário.

As palavras que funcionam no poema e que criam a carga poética para as outras palavras não são substantivos, pronomes pessoais ou verbos, palavras consideradas essenciais e integrantes, mas os advérbios de lugar e de intensidade; pronomes não do caso reto ou oblíquo, mas possessivos, demonstrativos.

Se os advérbios e pronomes em questão fossem abolidos do poema, na Canção do Exílio não haveria poesia, pois o simulacro (simulação de significado) não se operaria. São eles, os advérbios e pronomes que, paradoxalmente, criam a emoção poética, nesse texto, o mais expressivo insignt e epifania do Pós-Modernismo brasileiro, antecipado secularmente.

Ora, substantivos e pronomes são palavras que, por excelência, nomeiam, designam seres e coisas. Verbo exprime ação, estado e fenômeno. Advérbio é palavra acessória que modifica adjetivo, verbo ou outro advérbio.

Aqui, no entanto, em poesia, no poema, são os advérbios e pronomes que dão as cartas:

Nosso céu tem mais estrelas

Nossos bosques têm mais flores

Nossas flores têm mais vida

Nossas vidas, mais amores.

 O que está interdito nesses “Nosso/Nossos/Nossas”? Com os possessivos, as palavras “céu/bosques/flores e estrelas” assumem conotações subjetivas, cujos sentidos, no entanto, ficam implícitos e a declaração anímica não se derrama, se sutiliza.

Agora, tiremos os pronomes possessivos e os advérbios:

Céu tem estrelas

bosques têm flores

flores têm vida

vidas, amores.

Tudo se reduz ao sentido denotativo ou ao óbvio. Sem o possessivo nosso (os, as), céu, bosques, flores e vida voltam ao sentido real, denotativo; assim como as palavras, estrelas, flores, vida e amores, sem o advérbio de intensidade mais, perdem o sentido poético. Quando Gonçalves Dias diz “Nosso céu tem mais estrelas”, o mais, dentro do encadeamento semântico, cria, no todo, ressonância de transcendência pela carga de voltagem semântica que o possessivo lhe impõe. Em outras palavras, o poeta quer dizer que só o céu, que se ama, é o nosso céu, que se torna nossa coisa pertença pelo amor e, por isso, tem a generosidade das estrelas que quisermos. Nesse campo sem fronteiras semânticas céu e estrelas passam a representar, por imperativos do possessivo e do advérbio de intensidade, o universo infinito de tudo que amamos, por força das raízes telúricas do que em nós faz aflorar a emotividade.

Em Canção do Exílio, o poeta tentou expressar os sentimentos mais profundos de percepção de beleza e de abandono, solidão e exílio, sem usar um adjetivo explícito, para não se banalizar e para não banalizar o tema.

 

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I-Juca-Pirama, uma Odisseia Nacional

 Considerado por Otto Maria Carpeaux, como “o primeiro poeta verdadeiramente nacional”

e por José Veríssimo, como “o maior e mais completo poeta do Brasil”, creio que essas afirmações tenham a ver com o fato de Gonçalves Dias ser um poeta que fez a releitura dos principais arquétipos homéricos, ao recriar  os mitos do Ulisses e do Telêmaco, transpostos da Odisseia, para o plano das tribos de índios brasileiros, criando os mitos literários dos nossos ancestrais mais remotos.

Apresentamos o poema I Juca-Pirama como reinvenção da Odisseia, de Homero, no plano do índio nordestino e amazônico do Brasil. É no poema em questão que o poeta é mais revolucionário no campo da criação literária, quer do ponto de vista da estética, quer do ponto de vista da narrativa, principalmente do que tem a ver com a história da semântica e da linguagem do discurso poético brasileiro.

O grande lance de Gonçalves Dias está justamente aí, romper com a tradição e instaurar cânones e códigos completamente diferentes na concepção do poema. Sem dúvida, ele consegue criar mitos nacionais adaptando-os a partir de grandes arquétipos universais.

Conforme o próprio poeta Gonçalves Dias declara em carta, datada de 5 de julho de 1847 (Cf. Pantheon Maranhense, Tomo II, p. 46, Antônio Henriques Leal), referindo-se a um de seus projetos literários mais ambiciosos, a concepção que ele tinha sobre criação e obra literária já postulava e pontuava uma visão além de seu tempo, sugerindo releitura do ponto de vista paródico. Por exemplo, ele concebe o poema épico Os Timbiras como uma Ilíada brasileira: “Imaginei um poema… como nunca ouviste falar de outro: magotes de tigres, de quatis, de cascavéis; imaginei mangueiras e jabuticabeiras copadas, jequitibás e ipês arrogantes, sapucaeiras e jambeiros, de palmeiras não falemos: guerreiros diabólicos, mulheres feiticeiras, sapos e jacarés sem conta, enfim, um gênesis americano, uma Ilíada Brasileira, uma criação recriada. Passa-se a ação no Maranhão e vai terminar no Amazonas com a dispersão

dos Timbiras; guerra entre eles e depois com os portugueses”. […]

Uma espécie de Ilíada tropicalista brasileira, brasilindianista com todas as tintas de um colorido tipicamente carnavalizado. Uma releitura que tem um propósito narrativo ou romanesco épico, antecipadora da pós-modernidade. É imprescindível ressaltar que Gonçalves Dias foi mais além, quando no poema I-Juca-Pirama ousou enfrentar o desafio e correr os riscos de fazer a paródia de uma das obras literárias mais bem concebidas da história do romance-poema, a Odisseia, de Homero. Mais que Os Timbiras, em relação à Ilíada, o poema I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias, representa um marco no panorama da obra poética épica brasileira. A Odisseia, de Homero, passada ao plano de epopeia brasileira, minimalista, assume uma outra fisionomia, quando as falas da história constroem um discurso poético em que as pessoas saem da tutela dos deuses e ficam à mercê da dura e cruel realidade das selvas. Aí Gonçalves Dias apresenta ao mundo um outro tipo de Ulisses e um outro tipo de Telêmaco, que saem das peles de índios da tribo Tupi, em confronto com índios da tribo dos Timbiras, povos bárbaros, ferozes, guerreiros, canibais, porém marcados por qualidades, como honra, destemor, coragem, audácia, poder de dissimulação e inteligência invulgar. Sobre a pós-modernidade, publiquei estudos, no Anuário JP Guesa Errante, No. 3, 2005, pp. 55-57; 61-66; 69-86.

É instigante conferir, comparativamente, os graus de parentesco entre a obra fonte ou arquétipo, Odisseia, de Homero e a obra engendrada daquela, I-Juca-Pirama, onde o mar é outro, a Floresta.

Jean Batiste Debret (1768-1848)

Gonçalves Dias, portanto, transpõe para o Brasil o grande mito grego do herói dissimulado, astuto, habilidoso, inteligente, comedido, do ponto de vista não do espírito do arquétipo grego, senão da alma e do poder de percepção do índio brasileiro.

O Ulisses e o Telêmaco brasileiros, sob a pele do velho e do jovem índios são simples mortais, cujas vidas estão marcadas pelos estigmas das guerras tribais e pelo genocídio dos colonizadores. Eles assumem, então, marcas selváticas. Aqui, Ulisses/Odisseus é, minimalisticamente, um homem da selva, diferente do grego, apresentado como um deus, o que, no índio, é compensado por atributos como coragem, honra, solidariedade, compaixão e, acima de tudo, heroísmo.

O que há de comum em ambos é o pretexto usado antes da luta. Ambos têm que se manter fora dos próprios domínios, ou seja, tornam-se errantes, por força das circunstâncias; ambos fingem acovardar-se; ambos escondem, mascaram as origens; ambos usam o pretexto da dissimulação.

O jovem índio, tendo a sua tribo dizimada, vaga errante como guia do pai cego. Na Odisseia, há a presença do cão Argos, o cachorro de Ulisses, que o guia, quando este é transformado pela deusa Atena, filha de Zeus, no disfarce de um velho alquebrado e cego.

Busto do poeta grego Homero – autor das epopeias Ilíada e Odisseia

Há indícios relevantes de identificação e identidade entre os elementos narrativos da Odisseia, de Homero e o poema I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias. Observa-se, por exemplo, que, nas duas narrativas, há a presença do elemento trágico. As duas narrativas discutem os dramas humanos da busca e da espera, do amor recíproco, filial e paterno, da paixão pela terra/tribo de que os heróis foram desterrados, o retorno, o disfarce, a luta e a vitória.

Todos esses elementos estão contidos nas duas epopeias. Também os dois poemas dialogam sobre a busca de identidade entre pai e filho, a forte ligação que os une pelos mesmos elos, a separação forçada, a vontade de se defenderem um ao outro e a profunda admiração, respeito, amizade, o maior exemplo de amor paternal e filial, cujos laços unem pai e filho, na vida e na morte, na viagem e no retorno, na guerra e na paz.

Ulisses/Odisseus e o jovem índio tupi submetem-se, temporariamente, ao papel de anti-heróis como pretexto para ganharem tempo e poderem se preparar melhor para a luta. Ambos se deixam submeter a humilhações, vexames, são achincalhados de covardes e deixam-se passar por tal. Sob disfarce, Ulisses é motivo de escárnio. Tanto o protagonista da Odisseia, quanto o do I-Juca-Pirama usam de máscaras, disfarces para poderem atingir seus objetivos.

Talvez, pelo fato de Gonçalves Dias ter tido a felicidade de fazer uma releitura da obra máxima de Homero, bem urdida e bem elaborada, com um poder de síntese incrível e exemplar, o poema I-Juca-Pirama seja a melhor concepção de épico que se tenha em Língua Portuguesa.

Suspeito que esses sejam os verdadeiros motivos de, após 200 anos, Gonçalves Dias e sua mãe Vicença Mendes Pereira permanecerem vivos.

A sobrevivência no texto e na obra de arte, em geral, reafirma a única imortalidade que pode ser conferida a um ser humano. A obra literária do poeta Gonçalves Dias a ratifica.

 

Alberico Carneiro Filho é poeta, editor e professor