Antonio Aílton
Há uma deusa chinesa, pouco conhecida de nós, ocidentais, e de nossas mitologias, que é considerada a deusa dos raios e das fulgurações dos espelhos celestiais, a deusa Dianmu ou Leizi. Os raios de Dianmu são feixes de luz lançados para que o deus do trovão, seu marido, enxergue os humanos em dias escuros de tempestade, e não os mate.
Claro, é um dos mitos de explicação dos fenômenos incontroláveis da natureza, mas é uma bela figura para evocarmos, em alguns sentidos, a poesia dessa mestra do poema curto, de luminescência poéticas. Laura Amélia Damous é essa poeta de laminações límpidas e fulgurantes, cuja relação com o oriente não é implausível, conforme veremos.
Laura é natural de Turiaçu (1945), mas vive em São Luís do Maranhão desde os seus oitos anos. É aqui que ela construiu sua vida, sua poesia, sua participação na vida pública. Ela já teve cargos no primeiro escalão da Secretaria de Estado da Cultura, já foi Subchefe da Casa Civil do Governo do Maranhão e Gestora de Programas Especiais, foi diretora do Teatro Arthur Azevedo, revitalizou o Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, e, entre alguns dos seus títulos, é ocupante da cadeira 06 da Academia Maranhense de Letras, desde março de 2003. A poeta estreou em 1987, publicando Brevíssima canção do amor constante pelo saudoso SIOGE, o extinto Serviço de Imprensa e Obras Gráficas do Estado do Maranhão, em 1995. Depois publicou Arco do tempo, em 89; Traje de luzes, em 1993; Cimitarra, em 2001; Arabesco, em 2010, e Inventário dos Sentidos, em 2013. Laura é uma das poetas integrantes da antologia Poesia Maranhense do Século XX, organizada pelo escritor antologista Assis Brasil, e do Dicionário crítico de escritoras brasileiras de Nelly Novaes Coelho.
É importante observar que a poeta é bastante comedida no número de publicações, como se pinçasse pérolas, e, em pelo menos dois dos seus livros, Cimitarra e Inventário dos sentidos, ela une poemas inéditos a uma recolha substancial de poemas de livros anteriores, já esgotados.
Há, na poética Laura, uma vocação para lightning, o rápido, o raio fulgurante, que não pretende a violência da fulminação, mas da iluminação em nesga de imagem sensível que vem tocar a nossa mente e espraiar-se em tênues e ternas cintilações pelos ambientes escuros, mas receptivos, que estão em nós: os instantes evocados, as memórias, os vãos possíveis do sentir e do agir, as frestas de algum despedaçamento, um impulso, um agir, um reflexo, uma reflexão. Flagramos isso nesta
Inspiração
artéria aberta
desatada
sangra
até que o caminho
ilumine
o estreito vão do possível.
(Inventário dos sentidos, p. 70)
No caminho de outra Inspiração ainda anterior, também encontramos: “a branca luz do papel/ destila suor feito ímã/ o poema se impõe/ e gruda na pele da poeta”. Ou ainda num poema como Lua cheia (Cimitarra, p. 55):
Luz que se estraçalha
vai
brilha
ofusca outros olhos virgens de ti
não os meus
que te guardam
e te apagam
Quando dizemos “raios”, “flashes”, estamos, no entanto, intuindo que não se trata de um imaginário solar – ou nem sempre –, e sim da representatividade de uma presença feminina, lunar, irisada, que ao mesmo tempo que brilha, sangra, estilhaça, e pode se ligar, dessa forma, à luz que brilha na tempestade, e até à morte, para lembrar as prerrogativas daquela mencionada deusa. Evoquemos também a ideia dessas superfícies espelhadas: página em branco (branca luz do papel), pele do poeta e seu suor refletindo o mundo, a lua cujo reflexo não é apenas o de sua condição de pedra e bólide, mas metafórica e simbolicamente dos próprios anseios e “devaneios” humanos. O olho tocado pela emoção recebe da lua o próprio reflexo do que iluminou, isto é, seu próprio reflexo.
O caminho traçável das evocações, porém, se amplia. A forma poética de Laura se orienta para a simplicidade e para a imagética presentes tanto no haikai japonês quanto na ideogramática poesia chinesa. Ideogramas já são, por si, síntese e feixes de imagens, os quais a poesia ocidental mais recente recepcionou muito bem. Relembramos isso principalmente com o grande estudioso da poesia ideogramática, Ezra Pound, o qual teve vasta importância na poesia brasileira a partir do final dos anos 1950, principalmente entre os concretistas e adeptos de sua crítica. Ezra abriu nossos olhos à condensação poética e ao imagismo bem como ao orientalismo e ao haikai, o qual teve também entre nós outro divulgador, o Octávio Paz de Signos em rotação, além das possibilidades de acesso e interesse dos mais “antenados”, que grassou naquele momento.
São esteios aos quais nos apegamos quando lemos a poesia de Laura, a título de reconhecimento e de compreensão, mas é preciso considerar com a poeta que esses e outros teóricos, assim como os (in)fluxos poéticos desse momento de novas perspectivas já encontraram nela uma disposição íntima para o poema concentrado e rascante, conforme ela esclarece em conversas pessoais. O que advém busca seus caminhos e seus corpos, bem sabemos. É assim que recebemos de suas mãos espantosos poemas como:
Memória do tempo
Brevíssimo verão
frágil e fugaz
perpassa o coração trêmulo e assustado
O outono é a certeza
Ou:
Pastor infiel
Passei a noite pastoreando sonhos
Acordei trêmula e fraca
Hemorragia
Ou:
Lilás
Abril molhado
Abril molhado
Um arco-íris encharcado de ti
Dessa poesia emana uma sensibilidade que revela a fragilidade do mundo, uma quebra das instâncias aparentes, naturalmente imperceptível a outros olhos não tocados pela experiência do sentir a porosidade, tanto da matéria diuturna, quanto do tempo objetivo, ou das presenças neles. Instaura o transporte para o “lugar outro”, o “momento-outro”, como nos poemas de Inventário dos Sentidos (p. 54; p. 124), A pedra branca do banco da calçada da rua de tia Olga, título este que já se constitui numa imagem poética: “todas as vezes/ que penso nela/ eu entro no Taj Mahal”; e Ausência: “o ar/ é feito de ti/ oxigênio ausente”. É nesse fluxo que vasa também tanto aquele “espanto” poético-perceptivo, de que falava Gullar, assim como aquela epifania que era tão cara a Clarice Lispector, (mas em Laura estamos tratando do reino da poesia) como no poema Dois de novembro, presente naquele mesmo livro (p. 48):
a xícara branca
me encara do
outro lado da mesa
um tigre esfacelou
meu rosto no
agitado sono do
meio-dia
as formigas fizeram
um novo caminho
da cozinha à sala
sem um único volteio
meus dedos pesam
mais que nunca
e afundam junto
com o pudim no forno
eu tenho muito medo
de morrer
num dia feio assim
Quanto às presenças invocadas nos seus poemas, torna-se familiar o efeito de presença pela convocação do “tu”, do “ti”, como interlocutor do eu poético. Um “tu” referido ou amado, que coloca o leitor no espaço interseccional da relação, passível de também ser aprendida como representação/espelho das suas próprias experiências, como se sabe ser próprio da poesia instaurar e potencializar a “universalidade” da experiência colocada no cenário do poema.
Esse “tu” invocado e recorrente mobiliza, portanto, o Outro, e dinamiza de forma poliédrica a enunciação poética, ao se descentrar da autorreferência e possibilitar nuances e aspectualizações que vão do sublime ao descenso da(s) relação(ões), dos deslumbres e desejos aos seus contrapontos. É esse tu humano, plural, pessoa, que ora aparece sublimizado, irizado como no “Abril molhado/ um arco-íris encharcado de ti”; ora como alvo de uma entrega amorosa que se fragiliza voluntariamente ante o outro, como em Oferenda (Cimitarra, p. 107) –Venho te oferecer meu coração/como o peixe se oferece à captura/ no engano do anzol –; ora também pesado, duro, em sua corporalidade, por que não dizer, numa sexualidade rítmica em recorrência musical bruta, como em Bate-estaca (Inventário dos Sentidos, p. 78): “surdo /surdo / mudo/ duro/urro/ tu”.
Quanto relampear de sentidos tempestuosos em tão poucos versos, assentados sobre esse “u” surdo, assonante, em que as evocações do corpo impetuoso somam-se às evocações do instrumento musical (surdo), até à explosão do urro ambivalente (gozo bravio e agônico, erótico e tanatológico) e à encarnação/revelação final, quase acusativa, mas de reconhecimento deste que se revela e se completa: TU!
Para encerrar a breve leitura dessa fascinante poeta, em seus quase quarenta anos de poemas, entre tantas aberturas, é importante percepcionarmos as sutilezas, a delicadeza e a força das figuras femininas que a povoam, assim também como o peso do ser que tem seu sentido na condição humana e no próprio corpo. Tal condição exige a pragmática da sabedoria herdada: “minha avó Amélia que/ tinha as orelhas rasgadas/ pelo peso do ouro/ me deixou um tesouro/ não carregue mais/ do que a frágil carne suporta” (Herança, Inventário dos sentidos, p. 102), assim como a verdade de estar entregue indelevelmente a essa porta de saída, conforme podemos em Quiromancia, daquele mesmo livro: a mão do poema/ é a que me cabe/ inteira/ A outra/ eu carrego/ pesada e alheia – numa realização que só encontra sua plenitude no território da poesia, e aí poder ser lida em sua leveza.
Nessa poesia de Laura, em que mesmo o som se torna imagem experiencial e fenomênica, condensada e fulgurante, realiza-se o que o Hildeberto Barbosa evoca no prefácio do Cimitarra como a essência da poesia, qual seja, “o poder de dar à luz”. Assim se perfaz também num imaginário poético sensível como uma “portadora de espelhos”, desses lampejos escritos que, enquanto poesia, se colocam entre o mundanal e o celestial.
Antonio Aílton é poeta, crítico literário, professor, pesquisador da Literatura brasileira contemporânea, editor do Sacada Literária e membro da Academia Ludovicense de Letras. Autor de MARTELO & FLOR: horizontes da forma e da experiência na poesia brasileira contemporânea (EDUFMA, 2018), CERZIR – Livro dos 50 (Penalux, 2019) e A Camiseta de Atlas (EDUFMA, 2023), entre outros.
Uma das nossas grandes poetas!
Ceres Costa Fernandes escreveu em grupo do WhatsApp: “Antonio Ailton captou a essência íntima da poesia de Laura, as cintilaçãos fulgurantes que lampejam súbitas, inesperadas, e são suspensas, em seguida, deixando o leitor sem fôlego . Casamento perfeito entre criador e crítico. Obrigada por este presente do Sacada”. Tais palavras são e estímulo necessário para continuarmos mergulhando no poético.
Agostinho Ramalho (Academia Maranhense de Letras), em comentário em grupo do WhatsApp: “Poeta de laminações límpidas e fulgurantes”. O autor faz uma belíssima síntese da dicção poética de Laura Amélia, uma das mais brilhantes deste país. Cada poema é como um encantamento!.
Quando conteúdo sensível (Laura Amélia) e apreciação equivalente (A.Ailton) se juntam em louvor do exercício poético, visto da visão privilegiada da Sacada…Literária 👏👏👏👏[José Ewerton Neto]